PL da Dosimetria avança, Senado promete votar ainda este ano e Hugo Motta é alvo de críticas por condução apressada do projeto.
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| Hugo Motta acelera projeto que fragiliza a resposta aos atos golpistas. Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados |
O projeto avançou sob a condução direta do presidente da Câmara, Hugo Motta, que decidiu levar a matéria ao plenário sem amplo diálogo com o Executivo e sem debate consistente com a sociedade. O resultado foi uma votação apressada, marcada por críticas institucionais e por um silêncio ensurdecedor sobre as consequências históricas dessa decisão.
A falsa tecnicidade do PL da Dosimetria
Defendido como instrumento de “segurança jurídica”, o PL da Dosimetria vai muito além de um ajuste técnico. Ao estabelecer percentuais mínimos de cumprimento de pena e facilitar a progressão de regime, inclusive para condenados por formação de organização criminosa, o projeto rebaixa o peso simbólico e prático das sentenças contra os responsáveis pelos ataques às instituições democráticas.
Não se trata de corrigir distorções isoladas. Trata-se de uma revisão política das punições, feita não pelo Judiciário, mas pelo Parlamento, sob forte pressão de grupos interessados em aliviar a responsabilização penal de líderes e financiadores do movimento golpista.
O papel de Hugo Motta e a condução que mina a institucionalidade
Ao incluir o projeto na pauta de forma repentina, Hugo Motta não apenas acelerou uma votação sensível, como também provocou um choque direto com o Palácio do Planalto. O próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, foi surpreendido com a movimentação.
A presidência da Câmara deveria atuar como ponte entre os Poderes, e não como vetor de ruptura. Ao atropelar o diálogo e impor agenda própria, Motta assume o papel de protagonista de uma crise institucional que poderia — e deveria — ter sido evitada.
O benefício indireto a Jair Bolsonaro
Embora seus defensores evitem citar nomes, o PL da Dosimetria atinge diretamente condenações emblemáticas, como a do ex-presidente Jair Bolsonaro, sentenciado a 27 anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal.
A nova regra de cumprimento mínimo de 50% da pena para líderes de organização criminosa abre brechas para revisões futuras no tempo de encarceramento, alterando, na prática, os efeitos concretos das decisões do STF.
O recado que chega à sociedade é perturbador: enquanto o crime comum continua sendo punido com rigor, os crimes contra a democracia passam a receber tratamento diferenciado, negociado em plenário.
O Senado já anunciou pressa — e isso agrava o quadro
O cenário tornou-se ainda mais preocupante após a declaração do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). Ele afirmou que o Senado votará o PL da Dosimetria ainda este ano, caso a proposta seja aprovada na Câmara, destacando existir um “compromisso” firmado com líderes partidários e com o próprio Hugo Motta.
Segundo Alcolumbre, o projeto vem sendo tratado há cerca de seis meses e teria nascido de uma reunião sugerida por ele mesmo. “Fiz um compromisso com o Senado Federal, mas sobretudo com o Brasil, de que, se a Câmara deliberasse, o Senado também deliberaria”, declarou.
Essa fala é reveladora. O compromisso político antecede a análise técnica. A pressa, nesse caso, não decorre da urgência social, mas de um acordo de bastidores já previamente costurado.
Reação da base governista e alerta de Otto Alencar
No plenário, a tentativa de votação acelerada gerou reação imediata. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), foi categórico ao criticar o calendário apertado.
“Votar de afogadilho é impossível, é um desrespeito aos senadores”, afirmou. A frase resume o sentimento de parte significativa do Senado: não se pode tratar um tema dessa gravidade como se fosse mera formalidade legislativa.
O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), também pediu mais tempo para debate, defendendo que a matéria exige amadurecimento e análise técnica aprofundada.
Ainda assim, senadores da oposição pressionam por votação rápida, reforçando que o verdadeiro motor da celeridade não é a técnica, mas a conveniência política.
O STF no centro de uma disputa velada
Ao redesenhar critérios que já foram utilizados pelo Supremo Tribunal Federal, o Parlamento entra em território sensível. Não se trata apenas de legislar para o futuro, mas de rediscutir, por vias indiretas, sentenças já proferidas.
Enfraquecer o peso das decisões do STF neste caso específico é, na prática, reabilitar politicamente o golpismo, mesmo após sua derrota institucional em janeiro de 2023.
A democracia não se sustenta apenas com eleições. Ela se sustenta, sobretudo, com a certeza de que ataques ao regime constitucional têm consequências reais e proporcionais.
A narrativa equivocada da “pacificação”
Defensores do PL da Dosimetria insistem na tese da “pacificação nacional”. Trata-se de uma retórica perigosa. Não há pacificação sem responsabilização. Não há reconciliação verdadeira quando a punição é substituída por acordos políticos.
O que se constrói, com esse tipo de iniciativa, é um ambiente de amnésia institucional, onde os fatos perdem peso e os responsáveis ganham sobrevidas políticas.
O Centrão mais uma vez no centro do jogo
A votação revelou, mais uma vez, o papel do Centrão como eixo decisório da política nacional. Sem compromisso ideológico definido, o bloco atua conforme a correlação de forças do momento, mantendo pontes tanto com o governo quanto com setores que ainda relativizam o autoritarismo.
Nesse jogo, a democracia se torna variável de ajuste.
Um teste histórico para o Senado
Com a promessa de votação ainda este ano, o Senado entra em um dos momentos mais delicados desde o 8 de janeiro. Se confirmar a tramitação acelerada do PL da Dosimetria, a Casa Alta assumirá o papel de fiadora de um dos maiores recuos institucionais do período recente.
Hugo Motta já escreveu seu nome nesse capítulo controverso da história legislativa. Agora, Davi Alcolumbre e o Senado decidem se vão apenas rubricar esse acordo político — ou se terão coragem de interromper um movimento que pode custar caro à democracia brasileira.
A democracia sobreviveu aos ataques físicos do 8 de Janeiro. Resta saber se resistirá, agora, aos ataques silenciosos do próprio Parlamento.
Pergunta que não quer calar: Se até um golpe pode virar objeto de negociação, o que ainda é inegociável no Brasil?

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