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A Instrumentalização eleitoral da Causa Animal

“Não troco meu voto por ração e castração” não é ingratidão  é consciência política

Eleitor e seu pet
Eleitor votando com seu pet.Foto: Caio Guateli - AFP
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A frase “não troco meu voto por ração e castração” tem provocado desconforto em setores da política que se apresentam como defensores da causa animal. E não é por acaso. Ela expõe uma contradição central: enquanto discursos emocionados e ações pontuais ganham espaço nas redes sociais, decisões legislativas silenciosas desmontam, na prática, a proteção ampla aos animais.

Nos últimos anos, a causa animal tem sido alvo de um fenômeno perigoso: sua instrumentalização eleitoral. Políticos que jamais apresentaram um projeto estrutural para o bem-estar animal surgem em períodos estratégicos distribuindo sacos de ração, prometendo castrações pontuais e posando para fotos ao lado de protetores exaustos. Não se trata de política pública. Trata-se de compra simbólica de votos à custa do sofrimento animal e da vulnerabilidade de quem luta diariamente, sem apoio do Estado.

Doar ração não é governar. Bancar uma ou outra castração não é planejar. E explorar a dor dos protetores para autopromoção não é compromisso — é oportunismo.

Como reconhecer os paraquedistas da causa animal


Esses “paraquedistas da causa animal” se reconhecem facilmente: não constroem políticas permanentes, não destinam orçamento, não fiscalizam o Executivo e não enfrentam interesses econômicos poderosos. Pelo contrário, muitos mantêm posições alinhadas à extrema direita, defendem o agronegócio predatório, relativizam pautas ambientais e silenciam diante de maus-tratos estruturais. Usam a causa animal como vitrine, enquanto votam contra direitos sociais, ambientais e coletivos.

O compromisso real com a causa animal exige enfrentamento político, não caridade eleitoreira. Exige leis, orçamento, fiscalização, educação, programas contínuos de castração, hospitais veterinários públicos e políticas de bem-estar animal integradas à saúde e ao meio ambiente. Exige coerência.

Aos protetores, fica o chamado urgente à reflexão e à organização política. Gratidão não pode virar submissão. Necessidade não pode virar moeda eleitoral. A causa animal não pode ser refém de políticos que aparecem apenas em tempos de campanha e desaparecem quando o mandato começa.


Emendas parlamentares, ração e votos: quando a causa animal vira refém da política menor

As emendas parlamentares são instrumentos legítimos do sistema democrático. Existem para descentralizar recursos, atender demandas locais e corrigir desigualdades históricas. O problema começa quando aquilo que é direito vira favor — e quando políticas públicas são substituídas por ações pontuais usadas como moeda eleitoral.

Na causa animal, essa distorção tornou-se cada vez mais evidente. Legisladores passaram a utilizar emendas parlamentares para financiar campanhas de castração isoladas, divulgadas como grandes feitos pessoais, sem qualquer integração a uma política pública contínua, transparente e institucional. O recurso público, que deveria fortalecer programas permanentes, passa a ser apresentado como benevolência individual do parlamentar.

Não se trata de negar a importância da castração — ela é fundamental. Trata-se de denunciar o uso político do sofrimento animal e da urgência dos protetores para construir dependência eleitoral. Quando a única forma de acesso à castração ou à ração é por meio da “boa vontade” de um mandato específico, o eleitor deixa de ser cidadão e passa a ser refém.

Essa lógica é perigosa. Cria uma relação de subordinação: quem questiona, critica ou se posiciona politicamente corre o risco de perder o acesso ao recurso. O direito vira chantagem silenciosa. A política pública vira favor condicionado à lealdade.

É preciso afirmar com clareza: emendas parlamentares não são o problema. O problema é seu uso eleitoreiro, personalista e fragmentado, que impede a construção de políticas estruturais e perpetua a precariedade. Castração não pode depender de calendário eleitoral. Proteção animal não pode depender de selfie com parlamentar.

A causa animal exige planejamento, orçamento contínuo, controle social e políticas de Estado — não ações emergenciais eternizadas por conveniência política.


Quando o especismo sustenta alianças com o agronegócio


O PL 347 é um exemplo emblemático desse descompasso. Ao retirar os chamados “animais de produção” do escopo do bem-estar animal e da proteção legal ampla, o projeto cria uma hierarquia artificial de vidas: alguns animais merecem cuidado, outros podem continuar submetidos à exploração irrestrita. Trata-se de um retrocesso que atende diretamente aos interesses do agronegócio e ignora princípios básicos de ética, ciência e direitos animais.

O mais grave é que esse tipo de iniciativa frequentemente parte — ou conta com o apoio — de parlamentares que, ao mesmo tempo, se dizem aliados da causa animal. São os mesmos que distribuem ração, intermediam castrações pontuais e se apresentam como “protetores” em períodos eleitorais, mas votam contra políticas estruturais, flexibilizam normas de proteção e se alinham a agendas conservadoras.

Essa prática revela uma estratégia conhecida: usar o sofrimento animal e a exaustão dos protetores como capital político, enquanto se preservam alianças com setores econômicos poderosos. Não há contradição maior do que posar ao lado de animais resgatados e, ao mesmo tempo, apoiar projetos que legitimam a exclusão de milhões de outros animais de qualquer garantia mínima de bem-estar.

Ração não substitui orçamento público. Castração pontual não substitui política permanente. E caridade não pode ocupar o lugar de responsabilidade institucional.

A retirada dos animais de produção do campo do bem-estar animal revela o limite ético desses discursos. Mostra que, para alguns parlamentares, a causa animal é apenas um nicho eleitoral — útil enquanto rende curtidas e votos, descartável quando confronta interesses econômicos.


Quando o Estado falha, os protetores adoecem e morrem


Há uma tragédia silenciosa atravessando a causa animal no Brasil: protetores estão adoecendo emocionalmente, colapsando psicologicamente e, em casos extremos, morrendo sob o peso de uma responsabilidade que jamais deveria ser individual. É consequência direta da omissão do poder público.

O caso recente do protetor Guilherme Motta, em Teresópolis (RJ), escancara essa realidade. Guilherme pediu ajuda diversas vezes, alertou sobre a impossibilidade de seguir sozinho e denunciou a sobrecarga. Ainda assim, não foi apoiado pela prefeitura. Sua morte deixou cerca de 500 animais em um abrigo que já sofria com a negligência institucional — animais que, assim como ele, foram abandonados pelo Estado.

Não se trata de um caso isolado. É um padrão.

Protetores são empurrados para uma lógica perversa em que assumem funções que são dever do poder público: resgate, tratamento, alimentação, castração, acolhimento e até fiscalização informal. Fazem isso movidos por empatia, enquanto o Estado se ausenta e aparece apenas para capitalizar politicamente o esforço alheio.

Essa sobrecarga produz exaustão emocional, ansiedade, depressão e sensação de abandono. A romantização do “protetor guerreiro” mascara um adoecimento coletivo.

A morte de Guilherme Motta precisa ser tratada como um alerta grave. Protetores não são política pública. Voluntariado não substitui dever institucional. Empatia não pode servir de desculpa para omissão governamental.

A causa animal não pode continuar sendo sustentada por sacrifícios individuais nem pela exploração da dor alheia. É preciso romper com a troca desigual entre silêncio político e acesso a direitos básicos. Cobrar transparência, institucionalização e continuidade.

A pergunta final permanece:

Você se sente representado por políticos que transformam emendas públicas em capital eleitoral e a causa animal em moeda de troca?

A resposta define não apenas o futuro da causa animal, mas a qualidade da nossa democracia.

 

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