Enquanto o governo do Rio de Janeiro exibe corpos e armas como troféus, comunidades inteiras vivem sob medo e abandono.
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| Corpos enfileirados em praça na Penha, zona norte do Rio. Foto - Eduardo Anizelli/Folhapress |
Por Sanchilis Oliveira.
Nas últimas décadas, o Brasil se acostumou a ver manchetes sobre “megaoperações” policiais em favelas, helicópteros sobrevoando o morro e caveirões atravessando vielas estreitas. A cada ação, o roteiro é o mesmo: dezenas de mortos, escolas fechadas, trabalhadores encurralados e uma sensação de guerra permanente. No fim, o Estado anuncia “sucesso”, exibe números de armas apreendidas e corpos abatidos — e o ciclo recomeça.
Mas é preciso dizer o óbvio: combater o narcotráfico não é empilhar caixões. É sufocar o poder econômico do crime, cortar suas rotas de abastecimento, desmantelar suas redes de lavagem de dinheiro e impedir que armas e drogas cheguem ao país. O problema não está dentro da favela — está fora dela, nas fronteiras, nos portos, nos aeroportos, e, principalmente, nas estruturas de poder que lucram com a guerra.
A guerra errada, no lugar errado
A política de segurança pública brasileira, especialmente no Rio de Janeiro, mira o território mais visível, mas menos responsável pelo tráfico: a favela. Lá estão os vendedores e os soldados, os rostos expostos do crime, mas raramente os verdadeiros chefes. Enquanto o Estado transforma essas comunidades em campos de batalha, quem financia, transporta e lucra com o comércio de drogas segue intacto — protegido por conexões políticas, empresariais e até institucionais.
A guerra ao tráfico, da forma como é feita, é conveniente. Mantém a ilusão de que o Estado está “agindo”, enquanto poupa os poderosos que realmente movem a engrenagem. A cada operação, o noticiário mostra o morro tomado, mas não mostra o caminho por onde entram as armas, nem quem movimenta o dinheiro sujo em paraísos fiscais ou em empresas de fachada.
O crime nasce onde há lucro, não onde há pobreza
O narcotráfico não existe porque há favelas; há favelas porque existe um Estado que abandonou parte da população e um sistema que lucra com o caos. O tráfico floresce onde o Estado é ausente, mas se sustenta por meio de redes muito além da periferia: cartéis internacionais, políticos corruptos, empresários coniventes, e agentes públicos que fecham os olhos — ou participam.
Enquanto o foco continuar sendo a “guerra no morro”, o crime seguirá vivo nas mansões, nos gabinetes e nas fronteiras desguarnecidas. O verdadeiro combate deveria estar nos portos por onde passam toneladas de cocaína, nos aeroportos onde malas misteriosas viajam livres, e nos bancos que lavam bilhões sem levantar suspeitas.
A indústria do medo e o populismo da bala
Governantes como Cláudio Castro, no Rio, transformaram a segurança pública em marketing eleitoral. Quanto mais sangue, mais manchetes; quanto mais mortes, mais “resultado”. Esse populismo da bala alimenta o medo coletivo e cria a ilusão de força. No entanto, a cada operação “bem-sucedida”, o crime organizado volta mais forte — porque seu poder econômico permanece intocado.
Enquanto o Estado investe bilhões em munição, o tráfico reinveste bilhões em armas, tecnologia e corrupção. O resultado é uma guerra sem fim, onde quem morre é sempre o mesmo: o jovem negro, o trabalhador da periferia, o morador da favela.
Inteligência e integração, não extermínio
A segurança pública precisa deixar de ser espetáculo e passar a ser estratégia. O narcotráfico não se destrói com operações pontuais, mas com inteligência, integração e cooperação internacional. É necessário fortalecer a Polícia Federal, o controle de fronteiras, o rastreamento de armas e o combate à lavagem de dinheiro.
Da mesma forma, é urgente retomar o Estado nas favelas — mas com educação, cultura, saneamento, oportunidades e presença social. Só assim se quebra o ciclo de recrutamento de jovens pelo crime. Sem alternativas, eles continuarão sendo mão de obra descartável na guerra que o Estado insiste em perder.
O erro de tratar a favela como inimiga
A favela não é o berço do crime; é a vítima dele. Ao tratar comunidades inteiras como “territórios inimigos”, o Estado se distancia do próprio povo e reforça a exclusão. A bala que atravessa uma viela é símbolo de uma lógica perversa: a de que há vidas que valem menos.
Enquanto os helicópteros sobrevoam o Alemão, os verdadeiros barões do tráfico assistem de longe, com lucros intactos e influência garantida. A guerra às drogas virou uma guerra contra os pobres — e, de tão repetida, já perdeu qualquer aparência de solução.
O combate que o Brasil precisa travar
Combater o narcotráfico é ir à raiz do problema: cortar o fluxo de armas e dinheiro que alimenta o crime. É sufocar financeiramente as facções, e não sufocar comunidades inteiras. É fazer política pública, não política de confronto.
Enquanto o Estado insistir em medir eficiência por número de mortos, continuará perdendo para o tráfico — e para os interesses que se alimentam dele. A segurança pública deve ser um projeto de vida, não uma contagem de corpos.

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