A hegemonia tecnocrática de João Campos desmonta qualquer fantasia de continuidade do legado de Miguel Arraes.
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| João Campos em 2014 durante campanha presidencial de segundo turno para Aécio Neves. Foto: Divulgação |
Durante décadas, Pernambuco cultivou um dos mitos políticos mais duradouros do país: a ideia de que o PSB é naturalmente um partido de esquerda, guardião do legado de Miguel Arraes, defensor histórico dos trabalhadores, das políticas sociais e do enfrentamento às oligarquias. O problema é que esse mito não sobrevive a uma simples checagem de fatos — e insistir nele se tornou, para muitos setores da esquerda, um hábito tão confortável quanto politicamente nocivo.
João Campos, atual protagonista desse enredo, simboliza com perfeição a distância crescente entre o PSB real e o PSB imaginado. Ele é herdeiro de uma máquina tecnocrática bem montada, não de um projeto ideológico consistente. E quanto antes a esquerda admitir isso, mais rápido poderá reorganizar suas estratégias sem depender de aliados que a tratam como adereço.
O PSB depois de Arraes: quando o discurso ficou e a ideologia saiu pela porta dos fundos
O PSB aprendeu a sobreviver na política brasileira com uma habilidade que merece ser registrada: dominou a arte do discurso progressista temperado com alianças pragmáticas. Uma fórmula simples: fala como esquerda, governa como centro, negocia com a direita quando necessário. Esse híbrido funciona eleitoralmente, mas confunde quem ainda tenta enquadrar o partido em categorias ideológicas clássicas.
A verdade é que, desde meados dos anos 2010, o PSB já não se comporta como uma legenda de esquerda. Atua antes como um partido moderado, capaz de dialogar com todos os lados sem assumir um compromisso programático firme com nenhum deles. Essa flexibilidade estratégica é útil para quem governa — mas é fatal para quem busca coerência histórica.
2014: o momento em que o PSB mostrou que estava disposto a romper com a esquerda, se fosse conveniente
A campanha presidencial de 2014 foi o primeiro grande sinal de que o PSB se distanciava do campo progressista. Após a trágica morte de Eduardo Campos, a candidatura de Marina Silva se transformou em uma alternativa “nem PT, nem PSDB”, mas com acenos claros a agendas liberais.
No segundo turno, mesmo com declarações formais de “neutralidade”, diversas lideranças do PSB sinalizaram apoio — direto ou indireto — a Aécio Neves. Ali, parte significativa da base eleitoral entendeu o recado: o PSB não atuaria mais como aliado automático do PT ou da esquerda tradicional.
O gesto foi simbólico — e definitivo. Era o aviso de que a legenda se movimentaria de acordo com seus interesses, não com fidelidades históricas.
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| João Campos e Hugo Motta em encontro na sede do PSB. Foto: Divulgação |
2016: o impeachment e o racha definitivo com o campo progressista
Dois anos depois, o impeachment de Dilma Rousseff consolidou essa ruptura. Embora a direção nacional do PSB tenha flertado com posições críticas, uma parte expressiva da bancada votou a favor do afastamento da presidenta. Foi um movimento que, para a esquerda, representou a abertura de um ciclo de retrocessos sociais e políticos.
E o PSB ajudou a pavimentar esse caminho — goste ou não quem ainda fantasia com o socialismo romântico do passado.
A esquerda deveria ter aprendido ali que o PSB estava em outra sintonia. Mas não aprendeu. Continuou repetindo o mantra de que “é um partido aliado”, como se a história recente não tivesse valor explicativo.
2020: João Campos e a campanha que deixou claro quem ele é — e quem ele não é
A eleição municipal de 2020 no Recife foi, talvez, o momento mais didático para quem ainda insistia em acreditar que o PSB era “naturalmente de esquerda”. A disputa entre João Campos (PSB) e Marília Arraes (na época do PT) expôs a ferida aberta há anos, mas que muitos fingiam não ver.
João adotou uma estratégia agressiva — e politicamente calculada.
Atacou o PT com intensidade, explorou discursos anti-petistas, mobilizou estruturas de comunicação e marketing digital a todo vapor e transformou a eleição em um plebiscito interno do campo progressista. A mensagem era simples:
Ou você é PSB, ou você é PT. Os dois não cabem no mesmo projeto.
Foi uma ruptura explícita, conduzida sem culpa e sem pudor — porque, para João Campos, o PT não é parceiro. É adversário quando necessário. E coadjuvante quando conveniente.
A campanha mostrou também que João Campos não tem qualquer compromisso com a radicalidade social que marcou Miguel Arraes. Seu estilo político é tecnocrático, cuidadoso com a imagem, atento aos humores das redes e, sobretudo, focado em ampliar poder.
Não é esquerda — é administração. Não é Arraes — é marketing político.
2024: a humilhação do PT e a escolha do vice-prefeito
A prova final de que João Campos não enxerga o PT como aliado estratégico veio em 2024. Mesmo com apoio petista em seu primeiro mandato, mesmo com a “união do campo progressista” vendida como narrativa pública, João preteriu completamente o PT na indicação do vice-prefeito.
A escolha não foi casual, nem protocolar. Foi um gesto de autoridade. João Campos queria deixar claro quem comanda, quem obedece e quem está ali apenas para aplaudir. Ao preterir o PT, ele redefiniu a hierarquia política da aliança:
O PSB manda.
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O PT aceita — ou fica de fora.
E aceitou. Uma parte do PT ainda tentou vender “harmonia” nas redes sociais, como se estivesse tudo bem. Mas não estava. Esse episódio entrou para a história como um dos maiores exemplos de subordinação política já vistos desde a redemocratização pernambucana.
Miguel Arraes: o passado que não cabe mais no presente do PSB
Miguel Arraes foi um gigante. Um homem que enfrentou a ditadura, implementou políticas sociais em defesa dos mais pobres e incomodou elites. Não seria exagero dizer que ele representava a alma da esquerda pernambucana.
João Campos, por sua vez, representa outra lógica: a do poder pelo poder, a da gestão performática, da composição pragmática e da hegemonia institucional.
Confundir Arraes com João Campos é mais do que erro: é manipulação histórica.
Se Arraes tivesse governado com a ambiguidade ideológica que marca o PSB de hoje, ele não teria entrado para a história. Teria sido apenas mais um político eficiente, como tantos outros.
Arraes e João Campos: dois mundos que não se encontram
É intelectualmente desonesto comparar João Campos a Miguel Arraes. Um era símbolo de resistência, comprometido com as classes populares e enfrentava estruturas de poder profundamente desiguais. O outro governa com pragmatismo tecnocrático, moderação publicitária e alianças seletivas.
As diferenças são tão profundas que só o sentimentalismo político explica por que alguns insistem nesse paralelismo.
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| Lula conversa com Marília Arraes durante ato de apoio do Solidariedade ao presidente, em maio de 2022. Foto - Marlene Bergamo/Folhapress |
Marília é a única Arraes que defende a esquerda de fato
Enquanto João Campos se afastou do legado histórico de Miguel Arraes e adotou um pragmatismo político que o coloca muito mais perto do centro do que da esquerda, é Marília Arraes (SD) quem mantém viva — na prática, e não no discurso — a tradição progressista da família. Sua trajetória é coerente e verificável: enfrentou o próprio PSB quando a sigla rompeu com o campo popular, defendeu Dilma Rousseff no impeachment, rejeitou o apoio a Aécio Neves em 2014, votou sistematicamente contra pautas neoliberais e manteve alinhamento programático com o PT mesmo quando isso significou isolamento e perda de espaço. Marília não apenas reivindica o legado de Arraes — ela o pratica. É a única, dentro do clã político, que pagou o preço de permanecer do lado da esquerda quando esse lado deixou de ser confortável. Isso não é narrativa: é histórico, factual e comprovado.
A esquerda precisa parar de romantizar quem não é seu aliado
O maior erro estratégico da esquerda pernambucana — especialmente do PT — é continuar tratando o PSB como parceiro natural. Não é. Não há mais identidade programática, não há projeto comum, não há coerência histórica que sustente essa aliança.
Há conveniência — e só.
Enquanto a esquerda insiste em romantizar o PSB, João Campos segue consolidando um projeto próprio, centrista, hegemônico e cada vez mais distante das lutas que fundaram o próprio socialismo pernambucano.
Conclusão: é preciso dizer a verdade — o PSB não é esquerda, e João Campos não é Arraes
Se a esquerda quiser sobreviver, precisa dizer isso em voz alta — e agir de acordo.
Porque acreditar que João Campos é “o futuro da esquerda” só interessa a um grupo: ao próprio PSB, que se beneficia de uma ilusão que ele mesmo já abandonou há uma década.
Pergunta que não quer calar: Por que parte da esquerda insiste em chamar de “aliado” quem, repetidas vezes, demonstra não ter compromisso com o projeto de esquerda?
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