Ads

Análise - Voto distrital misto: avanço democrático ou retrocesso?

A proposta divide especialistas e reacende o debate sobre a representatividade e o poder dos partidos.

Domingos Neto
Deputado Domingos Neto (PSD-CE) autor da proposta do voto distrital misto. Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados

A proposta de instituir o voto distrital misto nas eleições de 2030 reacende uma discussão antiga, mas ainda sem consenso: qual o melhor modelo para garantir representação política justa e eficiente no Brasil? A mudança, em análise na Câmara dos Deputados, divide opiniões entre parlamentares e especialistas em ciência política. Enquanto uns veem no novo sistema uma oportunidade de aproximar o eleitor do eleito, outros alertam para o risco de enfraquecer minorias e consolidar oligarquias regionais.

Um sistema que promete aproximar o eleitor

Hoje, o Brasil adota o sistema proporcional, em que o voto dado a um candidato também ajuda a eleger outros da mesma legenda. O modelo privilegia partidos, mas frequentemente distancia o cidadão do parlamentar que o representa, gerando o sentimento de que “ninguém sabe quem é o seu deputado”.

O voto distrital misto propõe corrigir isso. A ideia é dividir o país em distritos eleitorais menores, onde metade das vagas legislativas seria ocupada pelos mais votados localmente, e a outra metade distribuída conforme o desempenho dos partidos. Na prática, o eleitor saberia exatamente quem o representa em sua região — um ponto defendido com ênfase pelo relator da proposta, deputado Domingos Neto (PSD-CE).

Para o cientista político Leonardo Barreto, o modelo pode ser “um avanço na relação entre eleitor e representante, reduzindo o anonimato dos políticos e facilitando a cobrança de resultados”. Ele argumenta que distritos menores tornam a política mais transparente e personalizada, fortalecendo a responsabilidade direta dos eleitos.

Mas há riscos de desigualdade e concentração de poder

Por outro lado, especialistas alertam que o sistema pode ampliar desigualdades regionais e favorecer elites locais, sobretudo em áreas onde o poder econômico e o clientelismo político ainda são fortes.
Segundo a professora de ciência política da UnB, Lúcia Avelar, “em regiões dominadas por famílias tradicionais ou grupos de poder, o voto distrital pode reforçar coronelismos e dificultar a renovação política”.

Há também o risco de que distritos mal desenhados — o chamado gerrymandering — distorçam a representatividade, beneficiando determinados partidos ou candidatos. Em países que adotam modelos distritais, como os Estados Unidos e o Reino Unido, esse tipo de manipulação dos limites geográficos já gerou sérias distorções eleitorais.

O desafio da proporcionalidade

O relator Domingos Neto defende um modelo com voto único, em que o voto no candidato também conta para o partido, eliminando a necessidade de escolher duas vezes — como ocorre na Alemanha. A intenção é preservar a proporcionalidade entre os partidos e evitar o aumento do número de cadeiras no Congresso.

Contudo, há quem veja o voto único como uma redução da liberdade do eleitor. Para o jurista eleitoral Carlos Eduardo Caputo Bastos, “a obrigatoriedade de que o voto em um candidato represente automaticamente o partido pode restringir a vontade política do eleitor, especialmente quando o cidadão não se identifica com a legenda”.

Um equilíbrio difícil entre representação e governabilidade

Na prática, o voto distrital misto tenta conciliar dois objetivos opostos: manter a representatividade dos partidos e reforçar o vínculo local dos eleitores com seus representantes. É um modelo híbrido, que busca o “melhor dos dois mundos”, mas que, na realidade brasileira, pode gerar desafios inesperados.

O cientista político Jairo Nicolau, referência em estudos eleitorais, avalia que “o distrital misto é um modelo sofisticado e interessante, mas o Brasil precisa estar preparado institucionalmente para aplicá-lo”. Ele lembra que o país ainda carece de estruturas eleitorais estáveis e transparência territorial, fundamentais para evitar manipulações.

O argumento contra o crime organizado

Um dos principais argumentos do relator é que o novo sistema dificultaria a entrada do crime organizado na política, ao reduzir o número de candidatos por estado e limitar as campanhas a áreas menores.
De fato, há indícios de que a fiscalização local pode ser mais eficaz em distritos restritos, mas especialistas lembram que o problema do financiamento ilícito e das candidaturas laranjas vai além do modelo eleitoral.
Para a pesquisadora Gabriela Lotta (FGV-SP), “a transparência no financiamento de campanhas e o fortalecimento da justiça eleitoral são medidas mais eficazes do que a simples mudança de sistema”.

Uma reforma necessária, mas não suficiente

O Brasil enfrenta uma crise de representação profunda. O distanciamento entre o eleitor e o eleito, o excesso de partidos e a baixa confiança nas instituições reforçam a urgência de reformar o sistema.
Nesse contexto, o voto distrital misto surge como uma alternativa promissora — mas não uma solução mágica.

Ele pode, sim, aproximar o eleitor do representante e tornar a política mais legível. Contudo, sem regras claras de distribuição distrital, sem fiscalização rigorosa e sem políticas de inclusão, o modelo corre o risco de reproduzir velhas distorções sob um novo nome.

Entre o ideal e o possível

O voto distrital misto é, ao mesmo tempo, um avanço e um risco. Avanço, por tentar corrigir o distanciamento e a impessoalidade da política brasileira; risco, por poder criar novos mecanismos de concentração de poder e desigualdade.

O debate é saudável e necessário. Reformar o sistema eleitoral é repensar a própria democracia. Mas, como toda reforma estrutural, requer planejamento, consenso e transparência — sob pena de transformar uma boa ideia em mais uma promessa frustrada.

A pergunta que não quer calar: O voto distrital misto será, de fato, capaz de fortalecer a representatividade política no Brasil — aproximando o eleitor de quem o representa — ou acabará servindo apenas para redesenhar o poder, concentrando influência nas mãos dos mesmos grupos que há décadas controlam o cenário político nacional?

Postar um comentário

0 Comentários