A PEC do marco temporal foi aprovada no Senado e é apontada como retrocesso para os povos indígenas. Medida limita demarcações e segue à Câmara.
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| Texto aprovado no Senado é criticado por indígenas e especialistas em direitos humanos. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado |
A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023 pelo Senado Federal, nesta terça-feira (9), reacendeu um dos debates mais sensíveis da democracia brasileira: o direito dos povos originários às suas terras. A proposta insere na Constituição a tese do marco temporal, que restringe as demarcações apenas às áreas ocupadas por indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
O texto foi aprovado em dois turnos no mesmo dia e segue agora para análise da Câmara dos Deputados. Para críticos da matéria, a decisão representa um retrocesso histórico nos direitos indígenas, ao desconsiderar expulsões forçadas, violências institucionais e deslocamentos sofridos por comunidades ao longo do século XX.
O que muda com a PEC aprovada
A PEC é de autoria do senador Dr. Hiran (PP-RR) e constitucionaliza regras que já haviam sido estabelecidas pela Lei 14.701, sancionada em 2023 após a derrubada de veto presidencial pelo Congresso Nacional. Com a mudança, o marco temporal deixaria de ser uma norma infraconstitucional e passaria a integrar o próprio texto da Constituição.
A proposta foi aprovada no Senado com 52 votos favoráveis, 14 contrários e uma abstenção no primeiro turno. No segundo turno, o placar foi de 52 votos a favor, 15 contra e uma abstenção. Antes disso, os senadores aprovaram um requerimento que permitiu a votação acelerada da matéria no mesmo dia.
O relator da PEC, senador Esperidião Amin (PP-SC), defendeu que o marco temporal estaria presente de forma implícita nas Constituições desde 1934. Segundo ele, a medida busca garantir segurança jurídica aos processos de demarcação.
Críticos alertam para apagamento histórico
Para organizações indígenas, juristas e entidades de direitos humanos, a proposta ignora a história de violações sofridas pelos povos originários. Comunidades foram expulsas de seus territórios por ações do próprio Estado, por grandes empreendimentos, pelo avanço do agronegócio, pelo garimpo e por conflitos armados.
Na avaliação dessas entidades, exigir que os povos comprovem presença física em 1988 é desconsiderar o contexto de perseguições, remoções forçadas e até massacres ocorridos durante a ditadura militar e décadas anteriores.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), por exemplo, classifica o marco temporal como uma violação aos direitos originários, que são reconhecidos como anteriores à formação do próprio Estado brasileiro.
Decisão contraria entendimento do STF
Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a tese do marco temporal era inconstitucional. A Corte considerou que os direitos territoriais dos povos indígenas são originários e, portanto, não dependem de um recorte temporal para serem reconhecidos.
Apesar disso, o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial ao projeto de lei que instituiu o marco temporal, fazendo com que ele entrasse em vigor em outubro de 2023.
Em abril de 2025, o ministro Gilmar Mendes determinou a suspensão nacional das ações judiciais sobre o tema e criou um grupo de trabalho com representantes dos Três Poderes. Esse movimento levou à paralisação temporária da tramitação da PEC no Senado, retomada agora com a votação final.
Governo vê problema, mas reconhece impasse
Durante a discussão em plenário, o líder do governo no Senado, o senador Jaques Wagner (PT-BA), reconheceu que o Brasil vive um cenário de insegurança jurídica, mas afirmou que o marco temporal não resolve o problema.
Para ele, os povos indígenas são penalizados por uma omissão histórica do Estado brasileiro, que descumpriu o prazo constitucional para concluir as demarcações.
“A culpa não é dos indígenas. A culpa é do Estado, que não cumpriu o que a Constituição determinava”, afirmou.
Defesa da proposta no Senado
Já o autor da PEC, Dr. Hiran, defendeu que o projeto traz previsibilidade jurídica ao país e criticou a judicialização do tema. Para ele, a demora do Supremo em pacificar definitivamente a questão aumentou os conflitos e a instabilidade.
O relator, Esperidião Amin, também elogiou a postura do ministro Gilmar Mendes na tentativa de buscar uma solução consensual entre os Poderes.
Parlamentares denunciam risco de massacres
Entre os senadores contrários à proposta, a senadora Zenaide Maia (PSD-RN) fez um dos discursos mais contundentes contra o texto.
“Não voto a favor de algo que pode massacrar um povo que já foi empurrado para longe pelo garimpo ilegal, pelo desmatamento e pela violência”, declarou.
Para ela, permitir a legalização de áreas anteriormente invadidas representa uma inversão da lógica constitucional de proteção aos povos originários.
Argumento do desenvolvimento divide opiniões
O senador Weverton Rocha (PDT-MA) afirmou que o marco temporal poderia impulsionar políticas públicas nas terras indígenas e fomentar atividades econômicas.
Segundo ele, escolas, hospitais e projetos produtivos poderiam ser estruturados com maior previsibilidade jurídica. Críticos, no entanto, alertam que esse discurso muitas vezes abre espaço para a exploração predatória dos territórios.
Povos indígenas veem ameaça direta aos seus direitos
Para lideranças indígenas, a PEC amplia o risco de novas invasões e legitima conflitos fundiários já existentes. Além disso, há temor de que terras em processo de retomada deixem de ser reconhecidas oficialmente.
Especialistas em direito constitucional avaliam que a constitucionalização do marco temporal cria uma tensão institucional direta com decisões já consolidadas do STF, além de abrir novos questionamentos jurídicos sobre direitos fundamentais.
Próximos passos na Câmara
Com a aprovação no Senado, a PEC segue agora para a Câmara dos Deputados, onde precisará ser votada em dois turnos, com apoio mínimo de três quintos dos parlamentares.
A expectativa é de que o tema gere forte mobilização de movimentos indígenas, ambientalistas, setor do agronegócio e juristas. Novos protestos em Brasília já são esperados nas próximas semanas.
A aprovação da PEC do marco temporal no Senado marca mais um capítulo de um embate que atravessa décadas no Brasil: a disputa entre desenvolvimento econômico, direitos territoriais e justiça histórica.
Para críticos, a proposta institucionaliza um retrocesso ao limitar direitos originários garantidos pela Constituição de 1988. Para defensores, a medida traz segurança jurídica e previsibilidade.
Agora, com a matéria sob análise da Câmara dos Deputados, o futuro das terras indígenas volta a ocupar o centro do debate político nacional.

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